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Notícias de Buriti Pequeno

Conheci Erva Brava primeiramente como Amanaçu, quando Paulliny Tort convidou possíveis leitores interessados a acompanhar os 12 contos escritos sobre uma cidade fictícia no interior de Goiás, onde tradição e modernidade travariam um diálogo, nem sempre amistoso, sob as bênçãos e as súplicas de um grande rio, também fictício, batizado pela autora como Amanaçu – que em tupi guarani significa tempestade, aguaceiro, chuvarada. Convite aceito, passei a receber os contos, um a um, todas as sextas feiras, por e-mail e, quando percebi, ansiava pelo final da semana para encontrar com os personagens de Buriti Pequeno, a cidade criada por Tort para ambientar os dilemas que perpassam pequenas comunidades com um pé na ruralidade do interior brasileiro, em meio à urgência tecnológica da contemporaneidade.

E todas as sextas, lá estava eu em Buriti Pequeno, cidade inspirada em Mambaí, município goiano próximo à divisa de Goiás com a Bahia, visitado pela autora em 2018. No entanto, a inspiração de Tort ainda buscava um rio que atravessasse a cidade e foi assim que ela criou o Amanaçu, que a princípio daria nome ao livro. Em seu texto de apresentação, ela adianta que o rio tem presença discreta em alguns dos contos, quase ausente, mas afirma que ele é a força do processo criativo que embala as narrativas. “Amanaçu é como o Rio da Almas, em Pirenópolis, ou como o Rio Vermelho, de Cora Coralina”. E, se ela desejava que o lugar dos seus contos fosse tão eloquente quanto uma personagem, devo dizer que conseguiu, pois, além de causar familiaridade, vestido de cerrado como se apresenta, abre possibilidades para o desenrolar das mais diversas tramas, descortinando a diversidade da alma humana.

E, quando finalmente o livro foi publicado, com o título Erva Brava, pela novíssima editora Fósforo, resolvi fazer uma segunda incursão pela obra, a fim de participar de uma roda de leitura comentada dentro da programação da Residência Literária realizada pela negalilu editora e pela Casa da Cultura Digital, com o apoio da Livraria O Jardim. Com o livro físico em mãos, comecei a fazer uma leitura sensorial que só o impresso permite, por meio da capa texturizada com pequenas estrelinhas e a ilustração de Rodrigo Yudi Honda, antecipando a dicotomia entre o rural e o urbano, na convivência entre galinhas no terreiro e antenas parabólicas, da mata ainda virgem circundando pequenas casinhas caiadas de branco e tampas de refrigerante transmutadas em lixo a poluir um cenário já não mais preservado.

O azul profundo do verso da capa e da contracapa me levaram a um mergulho quase literal no Amanaçu, que eu já sabia maculado pela civilização. Mas, como diz Tort, “um bicho, quando gravemente ferido, estaca, congela, morre. Mas os rios, mesmo semimortos, continuam em movimento, nunca param, correm e correm, indiferentes ao fato de lhes darmos as costas. É que os rios vivem tempos geológicos, têm outras paciências”. E assim, incitada pelo movimento da cor, iniciei meu mergulho começando pelas margens, ou pelas orelhas, impressas com o auxílio luxuoso do texto de Itamar Vieira Junior, dando à obra o merecido reconhecimento, já experimentado pela autora com o prêmio da APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte, a meu ver, o primeiro de outros que certamente virão.

Ternura e crack abre o livro como um soco no estômago, ambientando o rio num cenário urbano, onde a correnteza das águas pútridas faz pano de fundo para questões como a desumanização causada pelo progresso, a proliferação das drogas que transformam homens em espectros, a violência que categoriza vidas em necessárias ou desnecessárias, abrindo precedentes que autorizam a sobrevivência de uns em detrimento da morte de outros. Neste primeiro conto, Tort já diz a que veio, com uma prosa assertiva, enxuta, sem excessos, mas de uma profundidade que alcança as idiossincrasias individuais e coletivas e que se estende por todo o livro. Em cada história, é possível desvendar não apenas o cenário ora árido, ora exuberante dos rincões do cerrado, mas também a aridez e a pujança humanas, sem que haja qualquer tipo de julgamento ou juízo de valores.

Prescrutando as sombras de cada personagem, de modo a lhes revelar a luz, a narrativa da obra como um todo coloca em cena sentimentos como medo, ódio, arrogância, desconfiança, desejo e mágoa, ao lado da fé e da esperança que nos movem a todos em busca de um alento que nem sempre está disponível nas contradições da vida. Contradições que se impõem às vezes de forma tão subliminar, que geram questionamentos como o de Ezequiel que, na iminência da morte, ainda se indaga sobre o valor da sua vida diante de montanhas de soja, em Má sorte. Ou como o de Irene, em Matadouro, cuja dor é desvalidada sob a utopia das benesses do progresso da cidade grande, vendida tal qual folheto de propaganda. E, embora os personagens dos contos não se cruzem ao longo do livro, há uma coesão formando um cenário macro.

As histórias contadas por Tort que, para além de desvendarem os caminhos tortuosos que norteiam sonhos e desilusões, revelam um cenário que, no final das contas (ou dos contos) compõem um mosaico de riqueza ímpar, construído com fragmentos de uma vida em constante transformação, regida pelas tradições seculares em eterno embate com conceitos como urbanização e globalização. Ainda numa perspectiva de desvendar os meandros que orientam as posturas familiares e sociais, a autora traz à cena a questão do machismo arraigado em sociedades patriarcais como as de um país coronelista como o nosso sem, contudo, perder de vista a força e o protagonismo da mulher e o poder da sororidade.

Em Santíssima, a personagem principal é parteira por missão herdada da avó e, apesar de gostar “de barriga grande, redonda, cheia feito açude em época de chuva”, também ajuda as moças da vila a lidarem com barrigas indesejadas. Para ela, que acredita que Deus é amor, mas também é ira, ainda resta a missão de levar a erva brava a mulheres cansadas de violência, na ocasião em que a coragem suplantar a dor. Já Rita e Tereza, em Cabelo das almas, apesar de estarem em posições antagônicas de uma triste história de usurpação e injustiça, se ajudam e se apoiam na tentativa de minimizar um sofrimento inevitável. Ou em Mandiocal e Titan 125, em que Maria e Rosa, respectivamente, detém a palavra final em episódios em que o poder de decisão masculino aparece de forma naturalizada. Erva Brava une as mulheres na opressão, mas também no desejo pela liberdade do corpo e da alma sobre o destino.

E no conto final, Rios Voadores, ainda sem criar intersecções entre histórias e personagens, Paulliny Tort amarra todas as discussões a partir da vertente ambiental que, inevitavelmente, desemboca na questão existencial, uma vez que coloca o homem – a despeito de sua subjetividade e singularidade – como parte intrínseca de uma realidade inexorável. Igualados na iminência do fim, em que não há mais distinções entre pobres e ricos, ignorantes e letrados, homens e mulheres sucumbem diante das próprias escolhas, sejam elas solitárias ou comunitárias. “Quando a enxurrada que desce o Morro da Baleia encontrar o Amanaçu, os espíritos não se lembrarão de nós”. Ao prazer da leitura de um texto primoroso e à necessidade de reflexão sobre um mundo em caos – interno e externo – soma-se a certeza de que Erva Brava é leitura obrigatória para quem quer ver o mundo de olhos bem abertos.

Silvana Monteiro, jornalista e mestre em Educação.

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