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A mamãe, o carretel e o monitor cardíaco

Eu não gosto de você, de Raquel Matsushita, é um livro simples, que toca na profundidade dos afetos humanos. Sua receita? A verdade que nos humaniza, pois rompe com os ideais que descaracterizam as relações amorosas. Nesse livro a filha, que espera a chegada do novo membro da família, seu irmãozinho, desejado e esperado pelos pais, diz, com todas as letras, “eu não gosto de você.”

Se seguirmos o “fio da meada”, ou os fios, que a autora puxa de um pequeno carretel, alcançamos o desenrolar das “batidas de um coração”. É como se estivéssemos diante de um “monitor cardíaco.” Assistimos, compadecidos, ao que a menina sente pelo ritmo e movimento das linhas. A filha pressente que o “seu lugar” de filha “predileta”, ou, se preferirmos, filha “única”, encontra-se ameaçado. De fato, a criança não precisa ser “filha (o) única (o)”, no termo literal da palavra. Mas, independente desse fato, todo filho (a) carrega consigo a ilusão, ou, ao menos, o desejo de sê-lo. Todo filho (a) deseja ser o único que preenche todos os espaços do coração da mamãe. Nem o papai, esse irmão ou irmã, a criança deseja que venha incomodá-la nessa “doce e idílica” ilusão amorosa.

Se seguirmos com Freud, meu ilustre convidado, para dialogar com a obra e os leitores, vamos perceber que ele retira da cartola a seguinte frase: “Sua Majestade, o Bebê”. Assim, o pai da psicanálise realiza dois feitos, ele mantém a atenção de seus expectadores, no que está por vir, diante das suas investigações teóricas acerca das crianças, e, simultaneamente, revela a verdade de uma outra face: esse bebê, cedo ou tarde, perderá o trono. E, pra não dizer que devemos lutar contra esse primeiro objeto de amor, trago, aqui, a importância da entrada de um terceiro nessa relação. Essa entrada pode ser a de um outro, a do papai, ou da vovó, ou o trabalho da mamãe, enfim, a criança irá se deparar com a verdade de que ela não é única. Ufa!!! Ainda bem que isso acontece. Imagina viver a dois eternamente?! O cordão umbilical precisa ser cortado, e não é, na faca, que isso se dá.

Por falar em cordão, voltemos ao livro de Matsushita. Ela tece essa obra em linhas, cordas, cordão, que saem de um carretel, e, no seu desenrolar, vão dando formas aos sentimentos de uma criança, que está prestes a ganhar um irmãozinho, por isso mesmo, trata-se da mamãe, o carretel e o monitor cardíaco. A ilustração conduz o leitor a sentir, passo a passo, as batidas do coração do filho, que aguarda a chegada desse irmão, e, para a sua grande decepção, tem, ainda, que se deparar com um ser que “só mama, faz cocô e não fala”. De fato, acreditar que a criança deva “amar” a chegada desse novo membro, é querer demais. O contrário, deixar que a criança expresse seus afetos hostis e a rejeição é possibilitar o elo de um vínculo afetivo que se inicia. Deixar falar os afetos, ainda que negativos, é possibilitar o laço com seus nós, embaraços e desvios.

Termino esse breve relato lembrando que o ideal desencadeia uma linha reta, e, no monitor cardíaco, a linha reta aponta para o fim da vida. Então, para não assustar os leitores, lembro o que mencionei no início do texto, os afetos nos humanizam nas relações afetivas. O bacana é perceber que, a partir das linhas propostas pela autora, cada pai ou mãe pode reescrever seu próprio texto. O livro é um convite aos papais e mamães e filhinhos a se escutarem.

Termino lembrando de que a boa notícia é saber, pelas palavras de Manoel de Barros, que “a Reta é uma curva que não sonha”. Deixemos que os pequenos expressem seus sentimentos “tortos”, cheios de curvas, como a autora propõe em seu livro. Ah! Já ia esquecendo de dizer que Freud descobre a criança nos seus afetos de angústia, ao observar seu neto brincando. O pequeno, sempre que a sua mãe saía para trabalhar, jogava o seu carretel longe, para, seguidamente, e, repetidas vezes, puxá-lo novamente para si, pronunciando o som Fort-da. Era a criança tentando dar conta da saída da mamãe.

Não gosto de você, de Raquel Matsushita, é leitura de cabeceira para as mamães e papais que esperam o segundo bebê.

Denise Fleury, psicanalista e escritora, mamãe coruja de dois bebês, que cresceram e que escutam,  mesmo fazendo careta, “eu te amo”, todos os dias!

Adquira o livro na Pomar Livraria (Rua 132 A, 94, Setor Sul, Goiânia).

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