O artifício de abordar situações cotidianas, cheias de ironias e críticas, faz da crônica um gênero que chama o leitor para enxergar além da aparente leveza do texto. A situação de fundo, o que está nas entrelinhas, forma a matéria do que, de fato, quer ser dito. Uma espécie de armadilha, arrisco-me a dizer. E é assim que Cidinha da Silva arma uma arapuca e nos sequestra. No cativeiro do seu texto, as palavras estão enxertadas de potência crítica, com um olhar afiado sobre as sutilezas do racismo profundo, definidor e estruturante dos nossos olhares, posturas e formas de desenhar a vida.
Nesse seu lindo “Exuzilhar”, o que é narrado flui como uma história que vem sendo tecida e recontada nas tantas conversas de roda que ainda teimam em ecoar no nosso ouvido ancestral. O arquetípico mundo dos orixás atinge nosso inconsciente mais arcaico, trazendo uma profunda sensação familiar. Todos sabem do que se trata. É inescapável.
Quanto ao verbo-neologismo “exuzilhar”, Cidinha não tem a pretensão de formar um conceito, mas as crônicas nos guiam na elaboração do que possa ser esse entranhamento entre os signos “exu” e “encruzilhar”. Aos leitores que, como eu, pouco conhecem sobre religiões de matrizes africanas, a obra faz um convite a entrar nesse mundo que nos foi narrado, preconceituosamente, como “exótico”, desconhecido e assustador.
Exu é o orixá da linguagem, da comunicação entre os seres humanos e as divindades. Por ele, o divino chega a nós e toda a nossa humanidade contraditória, repleta de dúvidas, festas, fome e sexualidade alcançam os deuses. O abstrato e o concreto, o passado e o presente, a palavra e a carne. Tudo se complementando e girando na encruzilhada que é a própria vida. Qual a estrada certa para definir o meu destino? O meu destino é constituído de palavras e é por meio delas que Exu serve de guia.
“Exuzilhar” é sabedoria dos orixás transformada em carne.
Na crônica “Bandido também tem santo”, fica claro o divino interferindo no mundo concreto. Cidinha se livra de um sequestro por ser reconhecida como “filha de Oxalá”. Em “Subúrbia e Guimarães Rosa”, reforça-se a ideia de mundo como uma roda, tudo voltando ao início e recomeçando com novas roupas. Diferente, mas o mesmo. “É tudo círculo. Roda. O mundo gira e volta ao lugar do princípio”. No belo “Durga e a Senhora das Águas”, o amor é declarado por meio da ânima da autora, apresentando, assim, os aspectos femininos da existência.
Existe, também, espaço para reverência às pessoas que a ajudaram a constituir o seu caminho, como nas crônicas de adeus a Marku Ribas e a Luiza Bairros, e, ainda, na linda homenagem a Sueli Carneiro. A humildade de uma pupila dileta diante de seus mestres de jornada.
Há escritores que lemos para obtermos bagagem. Cidinha da Silva é para isso e muito mais: é para amar, reler, girar e transformar. Exuzilhar.
Manoel Camelo, advogado, escritor e apaixonado por livros e cinema.